Poderia ser


Ainda sobre aquele período em que vivíamos mais dentro do que fora. Naquele tempo em que ir jogar o lixo ou ir ao mercado eram os pontos altos da semana, ela pôde relembrar como é delicioso testemunhar as pequenezas dos detalhes.

O tempo que fez morada dentro, trouxe também a calmaria para ela poder enxergar (muito mais do que apenas ver). 
E ela o enxergou na fila que crescia, no estacionamento do mercado. Lá vinha ele encurvado, com muita dificuldade, amparado por duas muletas e os pés virados para dentro.

Ambos conseguiram entrar e o encontro entre eles aconteceu na sessão de pães. Ele a segurar uma sacola já com alguns produtos, mais as muletas e ainda a tentar retirar dois pãezinhos.

Ela a devorar com os olhos todos os tipos de pães disponíveis.
Até que o enxergou e, embora titubeasse na aproximação, ofereceu ajuda.

“Ô minha filha, muito obrigado! Por favor, ponha dois bolinhos de arroz, dois desses e um daquele docinho”.

A sacola do senhor que agora estava nos ombros dela, já pesava. “Como ele conseguia equilibrar tantos instrumentos naquele corpo tão debilitado?”
Ela lembrou-se dos seus avós que tiveram a infância em um circo da família.  

Papo vai, papo vem e juntos, percorriam os corredores a escolher mantimentos para o senhor. “Preciso de massa, um pacote de açúcar – pode ser daquele mais baratinho, um litro de leite e o mais importante, minha filha – um tablete deste chocolate, é para adoçar a minha vida!”

Ela sorri enquanto enche a sacolinha branca remendada com uma linha preta.
Terminadas as compras, ela colocou todos os produtos do senhor na esteira do caixa de número 3. 

Um a um os itens voltaram para a sacola gasta pelo tempo.
E foi ai que o atendente do caixa diz: “O senhor ou sua neta precisam de colocar contribuinte no recibo?”

Ela sorri e responde “poderia mesmo ser meu avô!” e retorna às suas compras.



* Produzido durante a Jornada da Escrita Afetuosa *
  


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